Ceroulas
Brancas
Por
volta de 1930, a freguesia do Estreito não
só constituiu motivo de notícia e de especulação nos meios de
informação regionais, como, foi tema obrigatório de conversas
entre a população madeirense.
No
alvo das atenções esteve uma quadrilha denominada da Ceroula
Branca, responsabilizada por uma onda de criminalidade e violência
que não só colocou em pânico a população local, como se
reflectiu negativamente na imagem exterior da freguesia do
Estreito, criando medo entre aqueles que não residindo nela, por
qualquer razão a pretendiam visitar.
Contando
com cerca de 28 indivíduos, na sua maioria com idades
compreendidas entre os 20 e os 30 anos, os Ceroulas Brancas
actuavam pela calada da noite e não dando oportunidade a que se
deixassem reconhecer ou a que fosse revelada, publicamente, a sua
identidade. Desta forma, a população, pela manhã era
confrontada com as consequências dos seus actos, situação que
era comentada "a boca pequena", não fosse estarem em
presença de algum dos seus membros e um comentário menos
oportuno pudesse desencadear uma atitude de retaliação.
Outros
dados referem, contudo, que a quadrilha dos ceroulas brancas fosse
composta por cerca de 60 homens, dos quais, em cada noite seriam
sorteados entre eles, os que em cada noite, iriam assaltar,
espancar e roubar os que por ali passarem a determinada hora da
noite e que teria uma caixa onde eram recolhidas importâncias
destinadas a socorrer qualquer sócio, quando estivesse preso [1].
Tendo
em conta os dados disponíveis, este número de elementos
constituintes da quadrilha, não corresponde à verdade e não
existem dados que nos permitam confirmar a existência da caixa
destinada a socorrer as vítimas, o mesmo já não se podendo
dizer relativamente ao sorteio que era feito entre eles, para o
exercício de determinadas tarefas.
Na
realidade, é do conhecimento geral, que algumas vezes, no decurso
das suas acções, era escolhido o ou os elementos que deveriam
realizar uma ou outra tarefa, sendo bastante conhecido o episódio
de ao ser escolhido um dos elementos para dar uma tareia na
primeira pessoa que passasse, nas proximidades onde o grupo se
encontrava, este teve de cumprir a sua missão, batendo no próprio
pai, que foi quem primeiramente passou pelo local.
Sobre
este episódio, uma outra versão refere que ao ser confrontado
com a presença de seu pai, o agressor tê-lo-á deixado passar
sem o incomodar o que fez com que fosse seriamente escovado pelos
colegas. Igual castigo teriam outros que não se desempenharam da
missão de que foram incumbidos tendo sido todos expulsos [2].
Esta
sociedade conseguiu estabelecer um tal terror no Estreito que as vítimas
com receio de mal maior nem se queixam. A referida sociedade é
conhecida pela denominação de ceroulas brancas por os seus
membros se apresentarem ao serviço em ceroulas brancas,
juntamente com camisas da mesma cor [3].
Perante
o desconhecimento da identidade dos seus autores, estas acções
eram envolvidas por um ambiente de grande mistério, o que levava
não só a especulações sobre a identidade dos seus responsáveis,
mas sem que, no entanto, houvessem certezas, e, mesmo que as
houvesse ninguém se atrevia a dizê-lo "preto no branco", como, ainda a atribuir todo o
tipo de agressões ou roubos a esta quadrilha, que assim, via
enriquecer vertiginosamente o seu palmarés e a sua fama.
Desta
forma, foi-se criando
à volta desta quadrilha um crescente mito de mistério e terror
que ultrapassou as barreiras geográficas da freguesia e fazia, não
só com que as suas vítimas, no caso de reconhecerem alguns dos
seus agressores, não
revelassem a sua identidade, como com que a generalidade das
pessoas não se atrevesse a andar na rua a partir do anoitecer,
com medo de ser surpreendidos numa
das suas acções nocturnas e em que apenas ao padre, ao médico,
à parteira e quem, em caso de necessidade, os fosse chamar, tinha
privilégio de livre trânsito.
É
aliás através deste mistério em que os Ceroulas Brancas estavam
envolvidos que se explica uma certa dualidade de opiniões sobre
as motivações e dimensão das suas actividades e que envolviam
danificações de terrenos cultivados, arvores de frutos,
canteiros e vasos de flores e jardins, apedrejamento de residências
e algumas perseguições de pessoas e agressões [4].
Sobre
a sua actividade a imprensa refere em 1933, já depois de terem
sido presos e castigados que a quadrilha dos ceroulas brancas
estava de novo em acção entre as várias proezas dos Ceroulas Brancas nestas últimas
semanas registaram-se alguns roubos e importantes danificações
de propriedades e culturas da região [...]. Afim
de tomarem melhor conhecimento das casas onde pretendem exercer a
sua acção, os meliantes têm usado de vários estratagemas, um
dos quais é se arvorarem em conquistadores pedindo as raparigas
para depois de inteirados dos haveres da casa seguramente fazerem
a pilhagem [5].
A
este propósito do recrudescemento da violência atribuída aos
ceroulas brancas, o Diário da Madeira de 17 de Agosto refere que afora
outras proezas que caracterizam vincadamente os instintos
malfeitores, os ceroulas brancas assaltaram, apedrejaram e
roubaram algumas casas particulares da localidade e, nalgumas por
maldade danificaram as respectivas culturas e partiram muitos
vasos com flores.
Para
inspirar um mais acentuado terror aos habitantes do Estreito, os
meliantes realizavam os seus assaltos à noite e armados de foices
e navalhas de barba.
Enquanto
que para uns, eles eram indivíduos perigosos e capazes das
maiores atrocidades, devido aos actos de agressão e assalto aos
transeuntes que cometiam, para outros, eles não passavam de indivíduos
que juntos e eufóricos com bebida se lembravam de, uma vez por
outra, sobretudo quando a alcoolémia era maior, de pregar a sua
partida a qualquer pessoa que passasse de noite pelos locais onde
estivessem reunidos. São aliás também estas as opiniões que o
jornalista do Diário da Madeira encontra, quando após a prisão,
em 1932, dos seus elementos vem ao Estreito para colher informações
sobre esta quadrilha e que o leva a afirmar não poder chegar a
conclusões positivas, visto não encontrar consenso relativamente
à natureza e fins dos Ceroulas Brancas.
De
acordo com este orgão de informação, não
se tratava de uma quadrilha em que houvesse pessoas de má fé. São
rapazes que vão para a bisca e tomam uns copos de vinho
dando-lhes, no fim, para por em prática aquilo que os jornais têm
dito. [...]
A
verdade é que eles andam mal metendo-se com quem vai no caminho
[...] Isto faz mal à
freguesia porque lá na cidade, podem julgar que pelo Estreito há
muito malandro quando afinal, não passa de meia dúzia de ratos.
Em
não quero acreditar que os ceroulas brancas constituíssem uma
organização destinada a praticar maldades. Simplesmente quero
crer que esses indivíduos acompanhados uns dos outros por causa
dos jogos e bebidas se lembram uma vez pela outra, sobretudo
quando os vapores alcoólicos eram maiores de pregar a sua partida
a qualquer pessoa que passasse de noite por onde eles estivessem
reunidos .... [6]
No
entanto, independentemente das duas facetas que, na realidade
pareciam apresentar, a
verdade é que os resultados ou consequências práticas da actuação
dos Ceroulas Brancas mostra claramente um predomínio da vertente
criminosa, ainda que haja a ressalvar o facto de nem todas as façanhas
a eles atribuídas terem sido por si protagonizadas.
Se
as motivações que levaram à constituição e à actuação
desta quadrilha eram as de diversão, o que poderá ser plausível
- carência de meios de lazer, ambiente propício, à eclosão
deste tipo aberrante de passar o tempo, criado pelo convívio na
venda, num clima onde o jogo e o alcoolismo se misturavam - o
certo é que alguns dos seus membros se revelariam em acções
isoladas indivíduos agressivos, situação que certamente
condicionaria o eclodir de alguns exageros na sua acção enquanto
grupo.
Relativamente
à origem da quadrilha dos Ceroulas Brancas os dados disponíveis
não são suficientemente claros. No entanto, parece que o
rompimento do noivado, por parte da noiva de um dos elementos que
viria posteriormente dar corpo juntamente com outros à quadrilha,
terá desencadeado, por parte deste, uma espécie de acção de
retaliação, para o que juntamente com alguns amigos, protegidos
pelas trevas da noite, foram até à casa da ex-noiva e aí
fizeram uma arruaça. Contudo,
pelo caminho terão tirado, por razões que se desconhece, ou então
para não serem conhecidos as calças, tendo ficado em
ceroulas. Daí a denominação dada à quadrilha, que depois se
viria a formar, por junção de outros indivíduos e cuja origem
se inspiraria nesta primitiva acção, pregar partidas ou
amedrontar as pessoas.
Em
1932 foram acusados de fazerem parte dos Ceroulas Brancas, Alfredo
Soares de Sousa, José Soares de Sousa, João Henriques de
Oliveira - o João Tomás - Juvenal Henriques de Oliveira, Manuel
Pestana - o Caia botas - Jacinto Gomes de Faria, Joaquim Figueira
da Silva - o registo - e Tolentino Pita, este casado e os
restantes solteiros [7],
[8].
A
título de curiosidade refira-se, no entanto que no sítio do
Caramanchão em Machico terá existido em 1947, uma quadrilha com
características semelhantes, composta de 30 indivíduos e que
atacavam e batiam de noite nos transeuntes. Eram quase todos
rapazes novos, produto da falta de educação, má índole e
desleixo dos pais, que deixavam seus filhos saírem [9],
[10].