Frei Pedro da Guarda
Um estudo histórico de Nuno Montemor
 
 

Publicado no Jornal A GUARDA
na sua edição de 23 de Julho de 1948
e reeditado em separata a 17 de Outubro de 1950


“Em Março de 1927, na hora exacta em que escrevia as últimas páginas de um livro, trouxe-me o correio uma alegríssima carta do Dr. Joaquim Diniz da Fonseca que era mais um grito espiritual, do que a surpresa emocionante de um belo alvitre literário.
Omitindo os formosos adjectivos, que muito me lisonjeariam se lhes pu-desse corresponder perfeita realidade, aqui resumo, em quatro pala-vras, o que o meu distinto amigo me comunicou, calorosamente:
Apresento-lhe um santo da nossa terra, tão belo e delicado, que o re-comendo à sua pena.
Para quem conhece o feitio algo severo e a avareza epistolar do Dr. Joaquim Diniz, uma carta destas, espontânea e ardente, era de erguer fervura na tinta do meu tinteiro.
Encontramo-nos depois em Lisboa, conversamos, e, por delicada inicia-tiva sua, foram postos na minha mesa documentos, manuscritos e impressos, sobre a encantadora e excelsa figura de Frei Pedro da Guarda.
Logo porém, a uma breve leitura, me lembrei de que, para se fazer obra completa, me seria talvez necessário ir à ilha da Madeira, onde o santo viveu os últimos vinte anos e teve capelas, estátuas, painéis devotos e procissões a que se tributava um culto maior do que o de Nun’Alvares, e, para a viagem me preparava, quando o meu escalavrado fígado me der-rubou, atirando-me 5 anos para as torturas dos hospitais...
Entretanto, soubera-se em Roma, por onde está a correr o processo de beatificação, que o escritor Nuno de Montemor ia escrever um livro so-bre Frei Pedro, e alguns pobres frades alarmados, receosos de que eu lhes desfigurasse um irmão da Ordem, procuraram o Dr. Mendes do Carmo, então Reitor do Colégio Português, em Roma, para que este meu velho amigo me convencesse a renunciar ao intento. Ingénuos frades que me não conheciam... Como se isso fora possível! Já lá vão anos...
Decerto, não foram os frades romanos nem a intervenção de ninguém que me detiveram a pena.
Os motivos irremovíveis, bem dolorosos, foram outros, e ainda espero que um dia me deixarão publicar o livro, que cheguei a anunciar com o título “O Serafim da Estrela”.
Numa hora em que a Guarda está em festa, reunindo todas as Beiras em sua casa, nestes últimos dias de Julho, em que completam preci-samente 515 anos que o santo nasceu e foi baptizado na Igreja de S. Vicente, da cidade, apraz-me dar à A Guarda um resumo dos meus trabalhos, aliás nunca esquecidos, na esperança comovida e certa de que já não virá muito longe o dia em que nesta terra tão azul e tão alta, se er-guerá o altar de um dos mais formosos e santos corações de Portugal, glorificado em todo o mundo e em todas as línguas, e só desconhecido na terra, onde nasceu e que tanto amou.
Àqueles que porventura se cansem e desiludam com esta demora de tantos anos, lembro que Nun’Alvares é mais velho que Frei Pedro, e de que só há pouco atingiu os altares da beatificação.

A CARIDADE DOS POBRES COM OS POBRES
Muito se engana quem julgue que nesses escuros e recuados tempos do século XV, a caridade era luxuosa fada de manto e coroa, que só vinha dos Paços Reais ou dos solares opulentos dos fidalgos, a visitar os po-bres e doentes.
Antes que a magnânima rainha D. Leonor imaginasse e fundasse os santos abrigos das Misericórdias, já na Guarda fria e nevada, um casal de pobres tecelões de panos, João Luiz e Águeda Gonçalves, fundavam na sua própria casa, sustentado pelo seu trabalho, um hospital-alber-gue, onde se acolhiam os enfermos filhos da cidade e os miserandos pe-regrinos de passagem.
Dia e noite, os pentes dos teares de João e Águeda cantavam, em amorosa fadiga, a ganharem o lençol, o caldo e os remédios dos doentes.
Teares pobres, feitos de pau castanho, de liços e canas, teares de pa-nos grossos, tecidos com lãs churras da Estrela, de que então se ves-tiam operários, pastores e ganhões, e até as moças coradas e sadias da Guarda, com os seus mantéus e mantilhas de burel pardo.
Os fidalgos da corte — tão raro e precioso era o dinheiro! — vestiam de seda, oiro e prata, pela quantia de meio tostão cada um, nessas remotas eras em que os almotacés — os fiscais dos mercados — não consentiam que animais da grandeza de uma vaca custassem mais que um vintém, a não ser o burro (não se sabe porquê) que era então o anormal mais caro da época.
Tempos de miséria sórdida e de esquecimento para as dores terríveis do semelhante.
Pois naquela casinha baixa de telha vã e paredes pardas, com longas e compridas dependências colmadas, para os quintais do Torreão, este humilde casal de tecelões trabalhava sem repouso, contente, ao agrado de Deus pagos pela benção de todos os que, a sofrer, lhe batiam à porta.
Clara, a filha mais velha, mas ainda menina, brincava por entre os leitos dos doentes que nela viam, consolados, as filhas mais novas, e Pedro, nascido dois anos mais cedo, em 27 de Julho de 1435, abraçava-os e beijava-os, de cama em cama, e era de todos o gracioso enfermeiro que lhes chegava o pucarinho de água, no verão, e o cobertor mais felpudo no inverno.
E as duas crianças mal saíam das enfermarias, que eram como longos corredores abrigados pela grande muralha do norte.
— Não me doba um novelo, não me ata um fio... — queixava-se por ve-zes João Luiz, mas contente e ufano por aquela doçura do filho que, em breve, se tornaria o ídolo da cidade.
Águeda, activa e trabalhadeira, lamentava-se também para as amigas, de que a sua Clarinha levasse a vida a bailar e a cantar, nas enferma- rias, quando não havia doentes de perigo.
— Lá para os teares é que os meus filhos não dão modo nem jeito...
E assim foram crescendo os filhos do João Luiz.

PEDRO E CLARA
Clara, adaptou-se à cozinha, onde a gente da cidade levava auxílios, e Pedro, robustíssimo, sempre descalço, imitava, com infinito amor, os cães de S. Bernardo, trazendo às costas, por alta noite, os viandantes que se perdiam, desfalecidos, pelas veredas nevadas da serra.
“É um santo!” — já se dizia!...
Por sua vez, Clara, também robusta, uma tarde de inverno em que no monte do Bonfim fora enforcado, por entre as maldições gritadas da multidão, um criminoso, réu de mil infâmias, ao saber que, por ódio e desprezo, ninguém o queria enterrar, e lhe deixariam o cadáver aos lo-bos e aos cães, correu ao cadafalso, cortou a corda do morto, tomou-lhe a cabeça no regaço, chorou sobre ele, amortalhou-o, e como Pedro o soubesse, a ela se juntou, para os dois lhe cavarem a sepultura.
“É uma casa de santos...” — murmurou-se por toda a cidade.
Já era como se toda a gente rezasse!
Um dia, já homem de 20 anos, Pedro foi bater à porta do convento de S. Francisco, o actual quartel de Caçadores 7, para o tomarem como irmão leigo, já que ao sacerdócio não chegou nunca a sua ambição.
Quando o abade lhe perguntou o que sabia fazer, respondeu com reli-giosa e ingénua humildade:
— Eu ajudo minha irmã na cozinha e a desfiar o linho para as feridas dos doentes.
— Queres então ser cozinheiro?
— Eu quero o que vossa paternidade quiser, mas também tenho braços e espinha rija, para trazer às costas, os que se perdem na serra...
E desde a sua entrada na ordem, nunca mais deixou o hábito.
Frei Pedro que mal aprendera letras, opunha, muitas vezes, aos que o censuravam, por deixar os pais, o caminho do completo abandono a Cristo.
“ Por Deus deixarás os teus pais, a tua mulher, os teus bens, tudo o que possuíres e mais estimares no mundo”.
E foi assim que ele professou, mandando a camisa e as ceroulas aos pobres, roupas que não mais vestiu, contentando-se, alegremente, e por toda a vida, com o hábito mais velho que lhe deram no convento, tantas vezes, ao depois, ensopado em sangue com os cilícios férreos da mortificação.
Não havia, porém, suplício, que lhe diminuísse a robustez heróica.
Como ele desejava e pedia, deixavam-no em noites de cerrado nevão, correr, descalço, por cerros e veredas da montanha, até alta madrugada e quando voltava, sozinho, murmurava, radioso, sacudindo a neve que o cobria:
— Ninguém... Não se perdeu ninguém!
Deitava-se, então, consolado, sobre um feixe de vides nodosas, no pa-vimento gelado da igreja ou numa tábua dura de carvalho, e dormia o sono de um anjo na doce paz do Senhor.
Se o seu angélico sono se prolongava para além do meio dia, os frades riam, brincando à volta dele, como à roda de um berço de criança, que ia ficar aflita quando, ao acordar, se lembrasse do esquecido almoço e da cozinha sem arrumo, mas como nenhum dos seus trabalhos sofria pre-juízo ou demora, já na cidade e no convento se acreditava a lenda de que os anjos, em certos dias, lhe acendiam o lume e lhe escumavam as panelas, enquanto Pedro dormia.

O TRAVESSEIRO DE PEDRO ERA UMA PEDRA DA GUARDA
Uma das obras piedosas de Pedro era a visita diária aos presos, então odiados e desprezados por toda a gente.
Havia-os de todas as classes, manchados por todos os crimes, caídos na mais negra tristeza, e pasmado ficou quando, um dia de Natal, surpreendeu um grande e jubiloso alvoroço, que, das janelas gradeadas e baixas da cadeia, re-tumbava para as ruas vizinhas.
Que feliz nova era aquela que até aos presos dava alegria?
Explicaram-lhe.
De Lisboa, o Rei mandara emissários, a prometer perdão aos criminosos robustos que se alistassem nas tripulações das naus, que partiam a descobrir novas terras e a povoar as já conhecidas, ao longo da costa africana.
Os criminosos oferecidos sairiam da Guarda no dia do novo ano, escol-tados até Lisboa por um troço de soldados, que os conduziria, atados por cordas uns aos outros, até os deixarem nos bojos das naus, ancora- das a meio do Tejo.
Abraçaram-se todos a Pedro, esperançados, contentes a pedirem-lhe que rezassem por eles, para se livrarem daqueles monstros marinhos, tão grandes como a serra da Estrela, que, de um trago, engoliam uma nau inteira.
Nesse momento, soube o ingénuo frade, pelos emissários da corte, que, em países onde ainda ninguém fôra, por mar, vivia gente de todas as co-res — pretos, vermelhos, amarelos, bronzeados — que só não amavam a Deus, porque nunca tinham ouvido o nome de Jesus.
A arder de entusiasmo, Pedro correu, alvoroçado, ao convento. Também queria ir, só para falar do bom Deus aos homens que o desco-nheciam... E pediu, insistiu, exortou.
— Irás quando Deus aprouver... — disse-lhe o superior, serenamente, a moderá-lo.
E, desde esse dia, Pedro levou a vida a sonhar com os sacrifícios glorio-sos das grandes aventuras cristãs.
E nunca mais esse obsessivo pensamento deixou de o enamorar: para além dos mais altos cumes da Estrela, havia mares e terras, que nem de lá se viam, onde gentes de outras cores só não amavam a Deus, porque ninguém ainda lhes falara dele.
E a sua ambição de bem fazer alargou-se infinitamente.
A sua Guarda bem amada era já, na visão do seu amor por Cristo, tão pequenina, como uma estrela palpitante no firmamento do mundo.
Desde então, a pedra onde angelicamente dormia, como em regalado travesseiro de plumas, começou a parecer-lhe dura, a tirar-lhe o sono!
Ir para longe, andar como os Apóstolos nos perigos das selvas e das on-das, ser batido e crucificado pelos indígenas, morrer por eles, era bem melhor que ensanguentar o corpo com cilícios agudos, num cubículo escuro do convento.
Ser marinheiro do Rei, balouçar-se nas suas naus, coberto por velas brancas, avermelhadas com as cruzes de Cristo, era ser apóstolo de verdade, do mais religiosos martírio.
Os horizontes vastos do convento, que davam, aos seus olhos, saudo-sos, metade de Portugal, não bastavam já à sede ardente de partir que o devorava.
Mas os anos passavam sem que o superior não mais lhe falasse da-quela abalada, e uma noite, a tentação abraçou-se a Pedro, tomando-o inteiro: fugiria, saltando o muro do convento....
Mas era desobedecer!... Porventura não seria maior virtude sofrer os negros ferros da obediência, do que voar com asas brancas naquele sonho cruzado?
— Andais triste, irmão Pedro... — diziam-lhe os companheiros, a pene- trá-lo, e a sorrir-lhe.
E o bom do frade doía-se daqueles sorrisos, por- que a chaga íntima do seu coração de apóstolo, sangrava mais que os golpes das cortantes disciplinas, e quando ia à busca dos extraviados e famintos nos caminhos da serra, ficava-se horas perdidas, sentado nos montes mais altos, a visionar mundos longínquos que apenas adivi-nhava.
A própria voz de Jesus Cristo lhe parecia grifar, por todos os recôncavos e ravinas das serranias, estas palavras bíblicas: “Ide por toda a parte e pregai o meu Evangelho a toda a criatura...”
Ah! ele não sabia pregar, mas queria dar-se aos que sofriam, e gritar o nome de Jesus aos que o não sabiam!
— Tão tarde! — estranhavam-lhe os irmãos, quando noite cerrada, vol-tava de tantas horas perdidas no sonho ardente, batido da neve e do vento.
Só então se recordava que, de todo esquecera a cozinha, que no con-vento provocara a fome, e a chorar, ia rojar-se aos pés do abade para que lhe perdoasse.
— Mas não faltou nada, irmão Pedro, nunca a ceia foi tão saborosa!
Os próprios frades sacerdotes já o reverenciavam, e em certos apuros a alarmes de consciência, beijavam-lhe as mãos, erguiam-lhas juntas ao céu, para que rogasse a Deus por eles.
Esta devoção que o convento já não escondia, mais lhe atormentou a humildade, e uma noite foi, contra a disciplina, acordar com gemidos, o abade:
— Deixei-me partir! Livrai-me disto, que eu não sou nenhum santo! — exorou de joelhos, de mãos na garganta, como a desfazer um laço que o estrangulava.
Brandamente, o superior desceu do catre, e também de joelhos como um devoto, murmurou:
— Ireis amanhã, irmão Pedro...
— Amanhã? Já amanhã?! — exclamou, radioso.
— Sim, de Lisboa pediram-me mais religiosos para as naus... — Tu se-rás um deles...
— Oh!...
Ficou extático! mudo! deslumbrado!
— Não levais saudades dos vossos pais, da vossa irmã, da vossa Guarda?
— Oh! muitas! Pois se eu lhes quero tanto!
E num soluço, todo lágrimas e sorrisos à mistura:
—... Rezarei por eles...
No dia seguinte, por entre penas e gritos da cidade que o venerava, Pedro partia, levando às costas na saca do farnel, apenas uma pedra — aquela pedra da Guarda que fora sempre o seu travesseiro, onde dor-miria até à morte.

UM HÁBITO DE REMENDOS NO JARDIM DA MADEIRA
Pedro fizera já cinquenta anos, quando, por uma sereníssima manhã de rosas, em mar azul, a nau o deixou no porto do Funchal.
O Atlântico, de Lisboa até à ilha, fora um doce embalo de brisas mansas, e desembarcara num paraíso sem vento e sem frio, todo aromas e afa-gos, só carícias e doçuras.
Que país de anjos aquela mansão de maravilhas, onde em vez de ne-gros muros de pedra, a dividir as terras, havia sebes de flores, e as árvo-res se mostravam carregadas de frutos deliciosos, ao colher da mão.
Parecia tentação do demónio!
Não era com terras de paraíso que ele sonhara, mas com países duros de evangélicos sacrifícios!
Na primeira noite, ao tirar do saco a pedra de dormir, chorou sobre ela o terrível desengano.
Aquilo era lá terra de penas cristãs, para quem, por tantos anos, as desejara!
Teve saudades dos gemidos que ouvira aos doentes na casa de seus pais, e do peso dos homens perdidos entre a neve, quando a ele se abraçavam para os levar, às costas, até à cama do convento.
Então ele viera para uma batalha por Cristo, e saíra-lhe um jardim de terrenas delícias?!
Mas, logo de manhã, a rua do convento avermelhou de sangue, numa rixa fratricida de fidalgos espadachins, e como o mar, pela noite fora, se fora encapelando em vagalhões de ciclone, chegaram-lhe, da praia, al-tos gritos de mulheres e crianças, que choravam os pais, os maridos e os noivos, tragados pelas ondas do mar largo.
Ah! aquela linda terra da Madeira não era só flores e perfumes! Também lá havia crimes e desditas.
E correu à praia.
Ninguém o conhecia!
As mulheres, alucinadas, desgrenhadas, torciam os braços amaldi-çoando, de mãos estendidas para o mar, enquanto os filhos meninos se lhes agarravam às saias, a tremer e a chorar, espavoridos!
“Não voltam! Já não voltam!” — clamavam de olhos em sangue, presos de agonia, nos horizontes do oceano infinito.
Pouco a pouco, o céu e o mar tornaram-se de cristal azul, e, pela tarde, as pupilas penetrantes, o olhar serrano de Frei Pedro, viu mais longe que os olhos embaciados de pranto:
— Além, na última linha do mar, vem uma barca com velas vermelhas!... — bradou Frei Pedro, apontando o braço.
— É a nossa! É a minha barca! São os meus filhos, é o meu homem! — gritou logo uma do bando, caindo aos pés do frade, enrodilhada, agra- decida.
— E atrás dela vem uma vermelha com as velas brancas, todas bran-cas...
É a minha!... É a nossa!... — exclamou outra, arrastando-se com os fi-lhos, a cercarem o frade.
— E ainda atrás delas, mais outras... mais três!... mais cinco!...
Um clamor de triunfal certeza se estendeu num instante, a toda a praia:
— São eles!... Vêm todos! salvaram-se todos!.
De joelhos na areia à volta de Frei Pedro, as mulheres e filhas dos pescadores beijavam-lhe o hábito.
“Foi um milagre! Foi um milagre! — gritava-se por toda a praia — este frade é santo.
— Não, não! — repudiava ele, esbracejando, como se o afrontassem e repelindo os que se lhe aproximavam — É que os meus olhos vêem mais longe que os vossos. Eu sou da serra da Estrela!
E quando todas as campanhas — uma centena de homens — chegaram à praia estenderam, para Frei Pedro os remos molhados, como se fos-sem palmas luzentes, a vitoriá-lo.
Estava canonizado, pelo povo do mar, o santo que vinte anos depois te- ria estátuas e igrejas, num culto maior que o de Nun’Alvares.
Na noite desse dia, Frei Pedro dormiria consolado como um anjo, de ca-beça sonhadora e feliz, na pedra bem amada da Guarda, que, à hora da sua morte, se dividia em lascas miudinhas de relíquia, e que muitos ma-deirenses ainda guardarão entre as íntimas jóias da sua devoção.
O santo daqueles mares e daquelas terras, ia prolongar o seu aposto- lado durante os vinte anos que lhe restavam de vida, não já enclausu-rado numa sela do convento de S. Bernardino, mas numa lapa sem porta, que escolhera para sua morada.
Aberta noite e dia aos que a ele recorriam, em todas as desventuras, a sua devoção propagou-se rapidamente a toda a ilha. Tornou-se sagrada a terra da lapa onde ele vivia e se deitava.
Dali a levaram, os marinheiros, para os perigos do mar e para as amar-guras das suas casas.
O mesmo punhado de terra, semeado sobre as ondas, enfunava as ve-las paralisadas nos perigos da calmaria, e sossegava as vagas, quando, erguidas em serras bravas, ameaçavam sepultar barcos e pescadores, e Frei Pedro sofria, na mais perfeita humildade, à medida que lhe esca-vavam a lapa.
— Levais a terra para me enterrardes?... — gracejava, às vezes.
A ocultas, ingénuos imaginários e pintores desenhavam-lhe o retracto, que devotamente suspendiam nos oratórios de bordo, e Frei Pedro par- tia imagens e retratos onde os encontrava, rejeitando a fama dos mila-gres que lhe atribuíam.
A terra da lapa, onde ele se acoitava, servia de remédio para tudo, para a alma, para o mar e para os renovos e sementeiras, quando a cana do açúcar e os trigos ameaçavam morrer de vermes, e até lhe atribuíam o poder de tornar invisíveis os navios sem defesa, que os piratas iam as- saltar.
Frei Pedro chorava, desolado, contra tantos louvores e prodígios que lhe atribuíam!
Ele, santo! Podia lá ser!
E para que o povo descresse da sua santidade, penitenciava-se até ao sangue, comendo apenas frutas bravias e amargas, mal provando peixes e carnes, sem que a sua vitalidade de serrano fosse abalada.
Aos setenta anos, é que a sua cabeça já se ia curvando, ligeiramente, como um arbusto fechado da Estrela ao peso da neve, no inverno.

FREI PEDRO ABENÇOA VASCO DA GAMA
Chegamos a 1497, quando Frei Pedro atingia 62 anos de idade.
Na Madeira, ao avistarem-se as grandes naus de velas brancas, esmal-tadas de cruzes rubras, que iam descobrir a Índia, toda a ilha se despo-voou para correr à praia, a saudá-las.
Vasco da Gama  concluiria então trinta e sete anos, e não era o velho de barbas longas brancas, que os livros mostram aos alunos nas escolas.
A sua barba ainda curta, cerrada e negra, emoldurava-lhe o rosto mo-reno de alentejano, onde o rosto moreno de alentejano, onde cintilavam dois olhos pretos, faiscantes, dominadores.
Os marinheiros temiam-no, mas acreditavam nele e obedeciam-lhe.
A bordo das naus - — Frei Pedro sabia-o — iam alguns criminosos, em busca de redenção pela bravura dos feitos que viessem a praticar, e o frade santo quis vê-los, falar-lhes, afervorá-los com abraços de benção.
Fora a visão dos presos da Guarda, que nele abrira a santa ambição de navegar e sofrer por amor de Cristo.
O almirante e seus oficiais, duros, inflexíveis, não os deixaram desem-barcar, no receio de que se extraviassem nos montes das ilhas, mas de-sembarcaram os marujos honestos, já sagrados por outras navegações heróicas.
O almirante, com o seu gorro azul de pluma branca e o seu gibão de ve-ludo carmesim ao sair do seu barco, viu na praia Frei Pedro todo remen-dado, que os pescadores apontavam aos seus marinheiros:
— Chegai-vos a ele, que é santo... pedi-lhe, rezai-lhe...
As lendas dos mares tenebrosos ainda se não tinham dissipado. Havia gigantes horrendos que, de um só olhar, matavam exércitos; sereias formosas que, a beijos e cantares de traição, afogavam os navios.
Para conjurar estes perigos,  os pescadores da Madeira ofereciam, aos marujos do Gama, a terra sagrada da lapa santa.
— Tomai dessa terra e atirai-a ao mar, que ela vos livrará da morte.
E metiam punhados de terra nas mãos dos marinheiros do Gama, que já acreditando nos milagres estupendos, a embolsavam, confiados.
A devoção por aquele frade, cercado na praia pela multidão ardente, era tanta, tão viva e clamorosa, que o almirante o mandou chamar, conta-giado pela mesma fé.
— Bom frade, abençoai as minhas naus...
— Senhor Almirante, eu não sou padre de benção...
— Abençoai-me em nome de Deus...
— Pois que Deus vos abençoe senhor Almirante, e vos torne glorioso à nossa terra...

A MORTE
Aos setenta anos, de cabelo espesso, emaranhado e branco, como neve amassada, Frei Pedro, que jamais sofrera doença, começava já a dobrar a fronte para a terra.
Levara a vida inteira a sorrir, na alegre paz do Senhor, a fazer as pazes dos lares, acudindo, com o milagre do seu amor, a pobres e ricos, ape-nas molestado pelos tributos dados à santidade das suas virtudes, de que ele era o único a descrer.
A divina fé destas virtudes, até lhe atribuía a graça de ver o caminho que seguiam as almas, no momento de abandonarem os corpos e havia quem jurasse tê-lo visto nas horas da prece, erguer-se da terra e ficar suspenso, para que de mais perto Deus ouvisse as suas preces e o con-solasse.
Todos lhe davam devoção e louvor, e os barqueiros e navegantes acreditaram que, de tantas vezes o santo dominar o oceano, já o próprio mar guardava respeito a todos os devotos do santo.
Ele fizera a paz na terra e no mar, dominara os fidalgos soberbos e bra-vios, e convertera criminosos, que para a formosa ilha o continente de- portava.
Quando a morte dele se avizinhava, o seu júbilo transbordou, e, cercado por todos os frades que a sua afeição convocara, para a despedida, de cabeça ainda deitada sobre aquela pedra que levara da Guarda, falou-lhes de eternidade e de perdão, e pediu que o levassem para junto da sepultura que os irmãos iam abrindo e cavando, enquanto Frei Pedro, em mal sumido canto, acompanhava, de lábios e rosto transfigurados, o ritmo surdo da enxada.
E assim Frei Pedro morreu, como se adormecesse, em 27 de Julho de 1505.

O CULTO DO SANTO
Mal o corpo de Frei Pedro desapareceu no sepulcro, logo os madeiren-ses lhe consagraram três capelas, onde entronizaram estátuas, retra-tos, painéis e recordações religiosas da sua vida, e, desde então, ne-nhum pescador ousava expor-se às ondas sem levar, no barco, a ima-gem do santo, florida ou alumiada.
Com Frei Pedro por guardião e piloto, seguros e fortes se julgavam con-tra os piratas, contra o mar e contra a morte.
À falta de bispos, que a Madeira ainda não possuía, pois só em 1510 a diocese foi criada, a devoção do santo deve ter sido autorizada pelo Comissário Geral dos Conventos Franciscanos, e, até ao ano de 1835, é incontestável, que o santo da Guarda teve um culto maior que Nun’Alvares, com perfeito conhecimento e aplauso dos bispos, que, ao depois, na Madeira, se foram sucedendo, até que o Papa Urbano VIII mandou organizar o processo de beatificação.
A esse tempo, já o frade egitaniense era amado e venerado pelos ir- mãos da sua ordem, em todos os conventos franciscanos do mundo.
E não eram só os franciscanos a bem quer-lhe.
Na Áustria, os Beneditos de Emauz publicaram a sua vida, e, grandes escritores, oradores e poetas lhe teceram hinos de glória em vários idiomas: em latim, em francês, em italiano, em espanhol, em romeno, em todas as línguas do orbe, onde chegou o for-moso renome desta alma serrana de angelical doçura, de uma suavi-dade etérea, límpida, imensa, como o azul vivo da terra, onde nasceu.
Pela sua beatificação insistiram, nos últimos tempos, junto do pontífice: o bispo do Funchal, em 3 de Outubro de 1905   o bispo da Guarda, em 16 de Abril de 1906; o cabido do Funchal, em 13 de Dezembro de 1905 e, no mesmo ano, o Cardeal Patriarca de Lisboa, e o Geral dos Frades menores, em 13 de Junho de 1908.
E através de mais antigos tempos: o bispo da Guarda em 28 de Novembro de 1624, e a Câmara da Guarda em 24 de Novembro do mesmo ano.
O cabido e a Câmara do Funchal, já tinham feito a sua representação, à Santa Sé, em 24 de Novembro de 1624.
Entretanto, a missa em louvor de Frei Pedro, era celebrada no oitavo dia de todos os Santos, sempre à espera de que o Papa lhe assinasse missa especial, em dia próprio.
E os esforços para a sua beatificação, que, em certos períodos, a polí-tica odienta ameaçava afogar, renovaram-se com redobrado ardor.
E assim, as orações e desejos pela beatificação de Frei Pedro continua-ram, até que surgiu a luta fratricida de legitimistas e pedristas.
Com a vitória dos últimos, capelas e imagens do santo foram reduzidas a entulho e cinzas pelo cónego Alfredo de Braga, categorizado maçom, que expressamente Lisboa nomeara para esta destruição, ajudado por um raivoso cabido de cónegos seus irmãos de seita, também expres-samente escolhidos para a grosseira e selvática impiedade.
No entanto, o processo da beatificação continuou e continua em Roma, não sendo para admirar a sua demora, pois que Nun’Alvares — a grande figura nacional — mais velho que Frei Pedro da Guarda, só há pouco foi beatificado.
De desejar é que todos os egitanienses rezem por esta beatificação, para glória de Deus e também desta nossa Guarda, que todos amamos.

UMA RECORDAÇÃO
Das aturadas pesquisas a que tenho procedido, discretamente, entre a mais velha gente da Guarda, destaco uma recordação dos meus recua-dos tempos de estudante.
Havia, na cidade, um habilíssimo mestre canteiro, chamado José Valentim.
À proba e hábil dedicação desse grande artista popular, deve a nossa catedral fiéis trabalhos de reconstituição, aplaudidos por arquitectos notáveis como Resendo Carvalheiro.
Creio que a este canteiro se devem também a estátua que decorava a frontaria da antiga igreja do seminário, e ainda umas artísticas armas episcopais que a sanha rubra de 1910 mutilou — estátuas e armas que mereceram as honras de se verem incluídas no tesouro do nosso mu- seu.
Pois uma tarde em que o hábil mestre canteiro abria formosos desenhos num bloco de granito, à sombra da Sé, eu, estudantito que me sentara a seu lado, sobre a minha capa, dobrada em almofada, disse-lhe:
— Os senhores, os pedreiros, deviam assinar com uma sigla, aberta a cinzel, as pedras que trabalham, como os escritores, escritoras e pinto-res assinam as suas obras.
— Uma sigla?!
— Sim, uma sigla, um sinal, uma espécie de assinatura a cinzel, como deixaram, no mosteiro da Batalha e noutros monumentos, os pedreiros que fizeram os templos.
O simpático artista, homem de poucas palavras, fitou-me com os seus grandes olhos claros, meio escondidos nas suas ramalhudas sobrance-lhas, e, numa voz profunda de legítimo orgulho, respondeu:
— Sim, senhor. Era assim mesmo que devia ser, porque nós, os operá-rios, também temos alma e cabeça.
Depois, suspensa a massa e o cinzel, guardou, por momentos, um si-lêncio concentrado, e passando os olhos extasiados pela nossa formosa Sé, como se a beijasse, perguntou-me:
— O menino estuda para padre?
— É verdade, senhor Valentim?
— Pois virá o tempo em que os padres virão dizer missa, nesta Sé, a um santo da nossa terra, um santo filho de operários como eu. Coisas que o menino não sabe...
Com certeza era Frei Pedro, filho de tecelões, que o bom Valentim se referia.
Pena tenho hoje de que a minha verde meninice, onde, nem de longe, apontava o destino desta minha esgotante e triste vida de escritor, não pudesse adivinhar os tesouros prováveis de informação popular que aquele homem me podia dar.
Quero acrescentar que os bosquejos recolhidos e pacientemente estu-dados que, em breve resumo, aqui deixo, não são voos líricos de lenda, que é muitas vezes a verdade florida, mas andam todas em velhos do-cumentos escritos ou nas tradições orais, e as tradições são fontes lím-pidas que a história desempoeira, recolhe e vivifica, quando se trata de reconstituir figuras já de si maravilhosas, a dentro do ambiente certo e sabido em que viveram.
E termino estas notas breves, sobre o santo da Guarda, oferecendo aos paroquianos de S. Vicente, este texto, onde se lê que o santo era da sua freguesia e nela foi baptizado.

GUARDA, URBE BEIRANA E PROVINCIAE IN REGNO LUSITANIAE, LUCEM ANNO 1435, DEDIT BEATO PETRO, A LOCO NATALI IN GUARDA DICTO, QUI IN PAROECIAL TEMPLO VICENTII, BAPTISMATIS LAVACRO ABLUTUS EST.

NOTA FINAL
Aos cépticos que julguem inverosímil a tradição de Frei Pedro da Guarda ter abençoado os descobridores da Índia, lembro que, depois da lúcida e culta discussão, em 1923, entre o grande professor da Universidade de Lisboa, Dr. José Maria Rodrigues, e o sábio e glorioso Almirante Gago Coutinho, provado ficou que as naus de Vasco da Gama tocaram na Madeira, onde se demoraram.
De espantar seria que o Santo, nesses ansiosos dias, vivendo, a toda a hora, adorado entre marujos e pescadores, se escondesse dos homens do Gama, que iam, não só descobrir mundos novos, mas difundir o nome de Cristo, abrasados pelo mesmo fogo patriótico e cristão que le-vara o santo a deixar a Guarda.
E se, por estranha humildade, ele se escondesse no retiro da sua lapa, os marítimos madeirenses e os seus camaradas das naus, lá o iriam buscar, e nesta lapa colheriam aquela terra de maravilha, que man-dasse nos ventos e nas ondas.
E é tempo de fechar estes ligeiros esboços, pois, por agora foi apenas meu intento apresentar à Guarda e aos que hoje a visitam, o santo egi-teniense [...].”
 

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